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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

MEDITANDO O URBANISMO

                         
Resumo
O presente trabalho estuda o urbanismo moderno como ciência, arte e técnica de organização do espaço urbano, privilegiando o pedestre e, para tanto, focaliza as calçadas, a ocupação do espaço público pelo particular e também analisa a perturbação do sossego pela poluição sonora. Propõe, por fim, a eleição de metas prioritárias ao Ministério Público, à Defensoria Pública e outras entidades legitimadas.
Palavras-chave         
Urbanismo. Meio ambiente. Direitos fundamentais. Espaço do pedestre. Ocupação do espaço público. Poluição sonora. Ministério Público. Defensoria Pública.
Sumário
1 Considerações preliminares. 2 Conceito de urbanismo. 3 Calçada: espaço urbano do pedestre. 4 Novo paradigma da responsabilidade civil por atropelamento. 5 Cessão indevida de bem de uso comum do povo. 6 Conceito amplo de meio ambiente e a perturbação do sossego público. 7 Legitimação especialmente do Ministério Público, ainda da Defensoria Pública e outras entidades.

1 Considerações preliminares
            Os últimos anos do século XIX foram pautados pela libertação da escravidão e superveniente processo imigratório europeu, acrescidos da migração do campo para a cidade motivada pela industrialização, fatos que descortinaram uma nova realidade brasileira.
            Em um primeiro momento, a sensação era de prosperidade, contudo as cidades não estavam aparelhadas na sua estrutura física, tampouco com planejamento para recepcionar os novos citadinos, causando graves problemas habitacionais e de saneamento básico.
Mesmo sem vencer essas dificuldades, o processo migratório campo-cidade continuou em ritmo acelerado, e hoje cerca de 80% da população brasileira vivem na zona urbana.
            Daí esta reflexão sobre a cidade, no seu especial aspecto jurídico-ambiental, para que se preserve o espaço urbano como destinado à realização do homem que nele vive, trabalha, circula, consome, desfruta do lazer, busca a felicidade, enfim procura realizar os seus sonhos e ideais, até mesmo os utópicos.
Cidade e cidadania têm a mesma raiz, portanto a cidade é construída para uma cidadania, para o cidadão,[1] afastada a concepção pessimista de Eça de Queiros, em “A Cidade e as Serras”, quando afirma que os sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam. É dizer, o urbanismo ganha relevo porquanto trata de direitos fundamentais.
            Temas tão importantes como o aspecto geográfico e sua gestão territorial não podem ficar à mercê das instituições representativas, devem extrapolar, abrirem-se à participação popular de modo efetivo, garantindo as disposições legais inclusive sobre o meio ambiente.
            Os eleitos, que passam a ocupar os poderes constituídos, não são a única fonte de sabedoria da qual as políticas públicas podem ser concebidas a partir de suas visões e crenças. Administrações concentradoras são espectros do passado, que o urbanismo atual demonstra ultrapassadas e de muito pouca eficiência, seja no aspecto de propiciar conforto e segurança ao cidadão, seja na sua própria arquitetura pouco atraente, mormente pelo improviso e falta de debate para um estudo mais consentâneo de preservação das belezas naturais, culturais e artificiais. Bem compendia esta assertiva a lapidar frase do mais citado constitucionalista da atualidade, o lusitano Canotilho: “o poder administrativo é popular e não do trono,” o que encontra suporte no art. 2º, inc. II, do Estatuto da Cidade.


2 Conceito de urbanismo
No passado não distante, o urbanismo resumia-se na arte de embelezar a cidade, embellir la ville na expressão dos precursores da decantada escola francesa. Sem a perda desse fim, passou a ser entendido também como ordenador das funções chaves da vida urbana, almejando promover o bem-estar para o maior número de pessoas.
            Hely Lopes Meirelles, referenciando o engenheiro Antônio Bezerra Baltar, professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco, ensina:

Em suma, o que entendemos hoje por urbanismo é uma ciência, uma técnica e uma arte ao mesmo tempo, cujo objetivo é a organização do espaço urbano visando o bem-estar coletivo – através de uma legislação, de um planejamento e da execução de obras públicas que permitam o desempenho harmônico e progressivo das funções urbanas e elementares: habitação, trabalho, recreação do corpo e do espírito, circulação no espaço urbano, Uma ciência capaz de definir esse objetivo, uma técnica e uma arte capazes de realizá-lo. Uma disciplina de síntese.[2]

            Na lição da doutrina inglesa, o urbanismo dialoga direta e imediatamente com o meio ambiente, pois é da sua essência o desenvolvimento unificado dos recursos de uma nação ou de uma região, visando estabelecer a unidade fundamental entre a natureza e o homem – unity of nature and mankind.[3]
De efeito, o conceito legal de meio ambiente permite que a doutrina construa um enfoque, que embora tridimensional em natural, cultural e artificial, é de caráter unitário ou sistêmico. Se o meio ambiente natural é integrado pelo solo e água, pela flora e fauna, além do ar atmosférico; se o meio ambiente cultural compreende as referências ou valores incomuns ligados à história e à tradição, ao patrimônio arqueológico e artístico; é o meio ambiente artificial, também rotulado de construído, o que mais se aproxima do urbanismo, pois os núcleos urbanos e a sua expansão dimanam das intervenções humanas na natureza em estado puro.
            Entra em cena o citadino, o homem das metrópoles, das cidades grandes, médias e pequenas, com os benefícios da vida urbana e também com as suas agruras.
            Neste trabalho interessa o espaço urbano, no que concerne a sua circulação e ocupação, matéria que tem merecido a meditação dos mais modernos urbanistas, ligados não apenas nas Ciências Humanas, onde está o Direito, como ainda nas Ciências Sociais que muito podem contribuir com esse mesmo Direito.

3 A calçada: espaço urbano do pedestre
            A atualidade é timbrada pela civilização do automóvel que, vorazmente, assenhoreou-se do espaço urbano. Ruas e avenidas, viadutos e passagens de nível, dentre outras obras, são projetados com esmero, tomando os passeios públicos e as praças. O traçado urbano privilegia o trânsito de veículos; o pedestre queda olvidado.
            Os fotógrafos amadores Ronaldo Pereira da Silva e Anderson Patric Joaquim cultivam o hobby de fotografar calçadas nos diferentes bairros da cidade de São Paulo. Procuram revelar a alma de uma cidade por meio das suas calçadas. E advertem: “a calçada é algo tão corriqueiro, passando por nossos olhos todos os dias, que nem vemos como elas são o retrato de uma comunidade.” Estes dois abnegados estudiosos do urbanismo sentiram isso literalmente na pele, um deles tropeçou no buraco de uma calçada e estatelou-se no chão, conta Gilberto Dimenstein em artigo inserido na Folha de São Paulo, edição de 16 de abril de 1998: “a dupla buscava os contrastes documentando as calçadas da periferia onde um deles tomou o tombo – e as de ruas como a Oscar Freire. Lá elas são todas niveladas, bem cuidadas, limpas, há lugar para sentar e conversar, respeito aos portadores de deficiência. Em outros lugares, simplesmente não há calçadas, o que os obriga a caminhar pela rua, em meio aos automóveis.”
            O mesmo jornal estampa reportagem publicada em 29 de julho de 2010, quando enaltece a Prefeitura Municipal de São Paulo pela reforma dos passeios públicos, foram feitos 30 quilômetros naquele ano e outros 40 quilômetros no ano anterior. Se pouco, considerando que a capital tem perto de 35 mil quilômetros de calçadas, não escapa, porém, à argúcia do observador atento.
            Todavia, em 2 de fevereiro de 2011, destaca em manchete: “Feiras invadem calçadas”. No corpo da reportagem enfatiza: “Outra irregularidade é a invasão de calçadas. Pela lei, as barracas devem funcionar de preferência na faixa onde passam os carros, é preciso liberar espaço mínimo de centímetros para pedestres. Na feira do Jardim Paulista, um restaurante diz ter queda no movimento porque a calçada em frente tem a passagem broqueada. Na Bela Vista, a rua Maria José tinha um lado inteiro da calçada obstruído pelos caixotes.”
            O malfazejo exemplo oficial faz escola nas obras realizadas por seus parceiros. É a letra do exemplar de 6 de setembro de 2013 da Folha de São Paulo: “As irregularidades nas calçadas de São Paulo estão ganhando reforço com a instalação dos novos relógios de rua espalhados por toda cidade. Em vários trechos, o consórcio responsável pelos equipamentos tem deixado buracos abertos no passeio. A reportagem flagrou a situação em locais como Radial Leste, Amaral Gurgel, Leme e Rebouças. Em nenhum desses casos havia qualquer tipo de sinalização que indicasse o defeito. Remendos realizados fora dos padrões da calçada original, o que podem causar quedas e desequilíbrio em pedestres, foram encontrados na Nove de Julho e na Consolação.”
            Esse jornal no Caderno Ribeirão, de 12 de outubro de 2013, denuncia: “Caçambas para recolhimento de entulhos da construção civil colocadas em calçadas de Ribeirão Preto estão impedindo a passagem de pedestres, principalmente na área central. Ontem, a reportagem da Folha percorreu algumas ruas do centro e encontrou 20 pontos onde as caçambas limitam a passagem de pedestres. Em algumas delas, as pessoas são impedidas de passar e obrigadas a disputar espaço com os carros na rua.”
            A revista Revide, de 19 de setembro de 2014, trouxe oportuna reportagem sobre a realidade dessa mesma cidade interiorana, onde ela é editada: “O deficiente visual Fábio Deodato Santos, Presidente do Conselho Municipal de Promoção e Integração das Pessoas Portadoras de Deficiência, aponta que as condições das calçadas são as maiores reclamações na entidade”. E o arquiteto e urbanista da Prefeitura de Ribeirão Preto, José Antônio Lanchoti, ao abordar as calçadas declara: “o problema se agrava na medida em que os proprietários de imóveis escolhem materiais sem levar em consideração o que acontece no imóvel ao lado”, completando: “essa preocupação objetiva evitar que não se tenha mais os indesejados degraus entre lotes”.
            Acrescenta-se ao desleixo e ocupação indevida das calçadas outra grave ocorrência. As posturas municipais têm disposição expressa a respeito, no entanto as prefeituras teimam em não fiscalizar. Emitem o alvará de habite-se dos prédios sem a cautela de fiscalizar os passeios públicos fronteiriços. Cada vez mais as calçadas são rampas de acessos às garagens das casas de morada e aos postos de combustíveis que ponteiam o espaço urbano, muitas vezes com revestimento feito de material inadequado, porquanto escorregadio. O pedestre é desrespeitado no seu elementar direito constitucional de ir e vir com o mínimo de conforto.
            As ruas e avenidas merecem recapeamento periódico. Bastam buracos para provocar merecida denúncia da desídia administrativa. É a civilização da máquina. Por paradoxal, não se pensa com a mesma preocupação na pessoa enquanto pedestre. Ou será que a máquina não está a serviço da pessoa?
            É bem o contrário da pregação de Luiz Anhaia Mello que, muitas décadas atrás do alto de sua cátedra, lecionava o imperativo de o urbanismo preservar, impor e exigir a precedência de valores humanos e espirituais em face dos mecanismos e imobiliários.[4]
            Alexandros Washburn, diretor de desenho urbano da Prefeitura de Nova York, sentencia: “Os carros estão em primeiro lugar há 50 anos. Agora é a vez do pedestre. É questão de equilíbrio, não de eliminação.” E conclui: “Em minha perspectiva, o pedestre é o mais importante. Caminhar é a atividade mais importante da cidade [...]. Quando você toma a decisão de colocar o pedestre em primeiro lugar, você adota um ponto de vista. Você vê os problemas através dos olhos de um cidadão caminhando.” É a oportuna entrevista publicada pela Folha de São Paulo, em 29 de agosto de 2011.
            Mais recentemente, na data de 28 de julho de 2013, o caderno Ilustríssima desse periódico estampou reveladora coluna sobre o urbanismo, com o título: “A marca humana: o arquiteto que quer ver a cidade a pé.” São ponderações do dinamarquês Jan Gehl, professor emérito de desenho urbano na Escola de Arquitetura de Copenhague, que da mesma forma pretende a prevalência do pedestre, chegando a afirmar: “você consegue pensar em algo menos inteligente do que o uso obsessivo do carro? É muito custoso, ocupa demasiado espaço, polui e é causa de muitos acidentes.” Expõe exemplos de cidades européias que tem reservado lugares cada vez mais atraentes para o pedestre, além de propugnar pela eficiência do transporte coletivo e do uso de bicicletas com vias que lhes são exclusivas, as denominadas ciclovias.
            Em São Paulo o Portal Mobilize Brasil coletou dados acerca das calçadas em 12 cidades brasileiras e na escala de zero a dez atribuiu-lhes o conceito de 3,64, elegendo como a melhor caçada a do Centro Cultural de São Paulo. Esse Portal tem informações proveitosas para um estudo mais aprofundado, inclusive sobre o material mais adequado a ser empregado e a estética a ser seguida, para tornar a cidade menos agressiva ao pedestre.[5]
            O Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas de São Paulo atesta que no atendimento de quedas das pessoas cerca de 18% são vitimadas em calçada, e que em caso de internação a despesa orça em R$ 40.000,00 por pessoa. Na verdade, a maioria de fraturas do maléolo, osso do tornozelo, encontra origem em acidentes no passeio público.[6]
            A Deputada Federal Mara Gaprilli, relatora do Estatuto do Deficiente, dedicará um capítulo para disciplinar a construção e conservação de calçada, modificando disposições do Estatuto das Cidades, discussão que certamente o Ministério Público vem acompanhando ante o interesse público predominante.
            Essa grave deficiência do urbanismo é histórica. Que fale José de Alencar no distante 1854: “Contudo, parece-me que o estado vergonhoso do nosso Passeio Público não é unicamente devido à falta de zelo por parte do governo, mas também aos nossos usos e costumes, e especialmente a uns certos hábitos caseiros e preguiçosos, que têm a força de fechar-nos em casa dia e noite”. Depois de criticar que “macaqueamos dos franceses tudo quanto eles têm de mau, de ridículo e de grotesco”, propõe que “nos lembramos de imitar uma das melhores coisas que eles têm: a flênerie, que é o passeio ao ar livre, lento e vagaroso, contemplando o ambiente ao redor, a beleza natural e artística. E prossegue o escritor entusiasta do progresso e que viveu importante transformação da cidade do Rio de Janeiro: “Não falando do Passeio Público, que me parece injustamente voltado ao abandono...”, para concluir: “A boa sociedade não precisa passear, tem à sua disposição muitos divertimentos, e não deve por conseguinte invejar esse mesquinho passatempo do caixeiro e do estudante. O passeio é distração do pobre, que não tem saraus e reuniões.[7]
            Aqui está a solução. As autoridades que tanto cuidam das ruas por onde passam com seus veículos, deveriam ser obrigadas, por lei, a praticar a flênerie, para sentir as agruras do caminhante, maior parcela do povo, nas calçadas ainda “em estado vergonhoso”.

4 Novo paradigma da responsabilidade civil por atropelamento

            Os pais de um adolescente ingressaram com ação contra o motorista de uma caminhonete e o Município de Franca, uma vez que em uma avenida marginal daquela cidade do interior paulista, com população aproximada de 310.000 habitantes, o seu filho foi atropelado e morto.
            Trata-se de via pública então recém-aberta ao tráfego coberta com capa asfáltica, desprovida de calçada e com deficiente iluminação pública, além de poucas placas de trânsito, sendo que o lastimável acidente ocorreu no breu noturno. Nos autos apenas a prova pericial inconclusa, dissertando que a vítima percorria a via carroçável próxima de onde seria o meio fio se calçada houvesse, e que o veículo desenvolvia velocidade próxima a sessenta quilômetros horários, considerada compatível.
            A sentença foi de improcedência pela ausência de prova da culpa do motorista, e quanto à responsabilidade do ente público também seguiu o mesmo raciocínio, até porque não existia, na época, lei municipal que obrigasse o Município a construir calçada ou mesmo notificar proprietários fronteiriços nesse sentido. O acórdão acolheu a decisão monocrática pelos seus próprios fundamentos.
            Os eméritos civilistas franceses, no comento ao Códe Napoléon, ofereceram lições inolvidáveis sobre o instituto da responsabilidade civil, ainda hoje, de valiosa pertinência. No entanto, outros paradigmas estão a bafejar os seus fundamentos, de modo especial duas funções são prestigiadas com acerto incontestável. Além daquelas tradicionais de garantia e de sanção, ou seja, a que garante às vítimas de danos a indenização correspondente, e a que imputa ao agente causador do dano o dever de indenizá-la, duas novas funções são acrescentadas: a preventiva e a precautória.
            A função preventiva ou de prevenção consiste nas medidas destinadas a evitar ou reduzir os danos causados por atividades necessárias ou úteis à vida em sociedade, mas conhecidamente perigosas, porquanto produtoras de risco atual. A função precautória ou de precaução estuda as atividades e coisas, também necessárias ou úteis à vida em sociedade, que encerram incerteza quanto a sua periculosidade, procurando evitar e controlar os riscos meramente potenciais. Matéria percucientemente estudada no Direito argentino, que não fala mais em responsabilidade civil, mas em direitos de dano, com ênfase a essas novas funções.[8]
            Entre os inumeráveis exemplos dessas funções desfilam as regras de trânsito dirigidas a evitar ou reduzir os acidentes causados por veículos. Aqui reside a segurança dos pedestres. Convivendo com os automotores em profusão, os pedestres não podem ser esquecidos, repita-se, no seu legítimo direito constitucional de ir e vir preservadas a sua vida e integridade física. Imprescindível, pois, no urbanismo moderno a construção e conservação de calçada, conforme padrões de conforto e segurança; o que é de responsabilidade dos proprietários de imóveis e das Municipalidades.
            Chamado a pronunciar-se pela falta de conservação de calçada, em meritório aresto, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu:

Responsabilidade civil – Indenização – Acidente ocorrido devido a buraco existente em passeio público – Proprietário do imóvel é responsável pela conservação – Municipalidade que tem o dever de notificá-lo para fazer a obra e, não o fazendo, assume o encargo – Responsabilidade solidária configurada. Emenda Oficial: Acidente ocorrido em passeio público, em razão de buraco existente. Responsabilidade do proprietário e da Municipalidade, em especial por força de leis locais, que cometem a responsabilidade pela conservação do passeio público ao proprietário do imóvel e à Municipalidade, que tem o dever de notificar o proprietário para fazer a obra e, não o fazendo, assume o encargo, cobrando seu custo ao proprietário. (TJSP, 5ª Câm. de Direito Público, Agln. 332.853-5/7-00, j. 04.09.2003, rel. Des. Ricardo Anafe, in RT 820/256).

Em caso similar, manifestou-se o Ministério Público de forma paradigmal:

O presente caso cuida de responsabilidade civil do Estado por omissão, ou seja, não manter e fiscalizar adequadamente as condições dos passeios públicos, assim criando as condições para ocorrência de acidentes. Nos atos omissivos o agente responde não porque causou o dano diretamente, mas sim porque não impediu o resultado quando a ele se impunha o dever de agir. A calçada é um bem público de uso comum do povo. Sua manutenção incumbe diretamente ao Município onde se situa. A lei municipal acostada não demite o Município do seu dever de fiscalização e manutenção do patrimônio público. Ela apenas autoriza a transferência dos encargos financeiros dessa manutenção ao particular. Até porque a legislação local não poderia exonerar a Municipalidade de sua função constitucional de tutela dos seus bens, na forma do art. 23, I, da Constituição da República. Esta é uma das funções do Município não podendo eximir-se de tal responsabilidade transferindo-a exclusivamente ao particular (extrato do acórdão inserido na RT 863/348, no mesmo sentido RT 817/235).

            Percebe-se, pois, que a sentença e o acórdão oriundos do processo que tramitou na Comarca de Franca merecem censura. Acidente de trânsito, tal qual articulado na inicial, na consideração de que se trata de responsabilidade civil subjetiva, conjuga a conduta culposa, o dano à vítima e o nexo de causalidade. Falto um desses pressupostos a ação é improcedente. O motorista não cometeu ato ilícito extracontratual, não há como imputar-lhe responsabilidade, assim disserta a prova pericial acostada nos autos.
            Há de convir, todavia, que o acidente danoso não foi obra do acaso, o damnum fatale dos romanistas. Não o justifica nenhuma causa de irresponsabilidade, subjetiva ou objetiva; foi causado pela carência de equipamento urbano.
            O mundo atual vive mais de duas dezenas de guerras, contudo o trânsito de veículos na realidade brasileira faz tantas vítimas anuais, se não mais, do que muitas dessas barbaridades para o grau de desenvolvimento que deveria timbrar as sociedades dos mais diversos países ditos civilizados. De um lado, a imposição da força bruta, de outro, a desconsideração pela vida, o que faz lembrar memorável lição de Francesco Carnelutti:
A humanidade segue, em todas as direções, o seu caminho, e na direção da ética o seu caminhar é uma extrema lentidão. Também aqui, a pouco e pouco, os homens se tornam melhores, mas seus passos são imperceptíveis, como se o ponteiro do relógio se movesse num quadrante de séculos.[9]

            Que evidente falta de ética o risco que está sobre o pedestre no seu próprio habitat, o espaço urbano, tendo de disputar com a mortífera máquina denominada veículo o seu espaço de locomoção!
            Penalista incomparável, símbolo como Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Hungria, em um dos acórdãos que relatou, comparava o automóvel a mais grave das epidemias.
            A cabeça do art. 5º da Carta Magna protege a vida e a segurança, estemado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948.
            O princípio da eficiência deve marcar a Administração Pública, mormente no resguardo ao princípio fundamental da vida e da segurança e aos direitos sociais do cidadão na sua convivência em comunidade. Entra em consideração, destarte, a eficiência na prestação dos serviços públicos básicos, e a calçada é um deles.
            A falta desse equipamento urbano pode ser traduzida na culpa do Poder Público ante a sua inércia, ou seja, deixa de fazer o que deveria fazer. Também demonstra inequívoca negligência do proprietário do imóvel urbano fronteiriço. A negligência do proprietário está inclusive no abandono da calçada em estado precário de conservação, e a do Município em não exigir o conserto devido. E, da mesma forma, milita com imprudência quem constrói calçada em desacordo com as normas técnicas, do que é solidário o Poder Público quando outorga, nessas condições, o alvará de habite-se ou não procede à fiscalização devida.
            De qualquer forma, o irrefragável é que, em tais situações, incide a culpa contra a legalidade, pelo fato concreto de descumprimento de um dever legal, trazendo em seu bojo uma obrigação propter rem. Quem assim procede há de provar a sua não culpa, isto é, dá-se a inversão do ônus da prova pela presunção da culpa, ao menos apresenta alguma vantagem à vítima.
            É a doutrina capitaneada por Celso Antônio Bandeira de Mello, ocorrendo omissão estatal, porque o serviço não funcionou, funcionou tardiamente ou ineficientemente, a responsabilidade civil é subjetiva.[10] Segue a mesma senda Maria Sylvia Zanella Di Pietro, inclusive referenciando o citado Bandeira de Mello.[11]
            Tal entendimento, porém, não é a melhor exegese.
            Hely Lopes Meirelles propugna pela responsabilidade civil objetiva do Estado sempre que o “agente da Administração haja praticado o ato ou a omissão administrativa na qualidade de agente público.”[12] Compartilha com ele Toshio Mukai.[13]
            Dissenso doutrinário que foi reiteradamente debatido no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, resultando no acolhimento da tese da responsabilidade civil objetiva (18ª Câm. Cív., ap. 2006.001/58001, rela. Desa. Cássia Medeiros, j. 3.5.2007; 2ª Câm. Cív.; ap. 2006.001.48185, rela. Desa. Leila Mariano, j. 10.10.2006; 16ª Câm. Cív.; ap. 2005.001.07576, rel. Des. Mário Robert Mannheimer, j. 13.12.2005; 12ª Câm. Cív., ap. 1999.001.21600, rel. Des. Celso Guedes, j. 13.3.2000; 13ª Câm. Cív., ap. 1998.001.01577, rel. Des. Azevedo Pinto, j. 15.7.1998). Acórdãos que seguem na esteira de julgado do Superior Tribunal de Justiça (1ª T., REsp. 474.986-SP, rel. Min. José Delgado, j. 10.12.2002). Assim são permitidas as seguintes conclusões: a) “Os tributos pagos pelos munícipes devem ser utilizados, em contrapartida, para o bem-estar da população, o que implica, dentre outras obras, a efetiva melhora das vias públicas (incluindo aí as calçadas e passeios públicos)”; b) “Para que configure a responsabilidade objetiva do ente público basta a prova da omissão e do fato danoso e que deste resulte o dano material ou moral.”[14]           
            Cumpre avocar, para reforço dessa posição, a lição do saudoso jurista das Arcadas, Antônio Junqueira de Azevedo, ao discorrer sobre a caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana.

Ponto fundamental do respeito à integridade física e psíquica é o da obrigação de segurança. Os autores nacionais parece que ainda não se conscientizaram de que a obrigação de segurança, tão firmemente referida nos arts. 8º, 9º e 10 do CDC (Seção “Da proteção à saúde e segurança”), tem sede constitucional, seja como decorrência do princípio da dignidade, seja por força do caput do art. 5º da CR. A obrigação de segurança hoje se “automatizou”; existe independentemente de contrato – pode não haver contrato nem muito menos importa se o contrato é gratuito ou oneroso (transporte pago ou não, hospedagem, serviços em geral etc.). A obrigação de segurança existe sempre; os danos à pessoa devem ser indenizados. É importante dizer: em matéria de danos à pessoa, a regra é hoje exceção. A responsabilidade objetiva, na obrigação de segurança, surge agora diretamente da Constituição (não é da lei ou da jurisprudência); somente haverá responsabilidade subjetiva quando houver lei expressa (por exemplo, na responsabilidade médica – na qual, assim mesmo, há inversão do ônus da prova, porque a prova deve ser feita por quem tem melhores condições de fazê-la). A admissão da responsabilidade subjetiva como exceção à responsabilidade objetiva constitucional é admissível, porque os preceitos decorrentes dos princípios jurídicos não são absolutos.[15]

            O Magistrado Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva, embora entenda que o art. 5º da Constituição Federal ao prever o direito à segurança não tem o alcance dado pelo ilustre professor, admite que esse pensamento passou a influenciar a doutrina e auxilia quem defende que as responsabilidades objetiva e subjetiva, como atualmente se encontram no Código Civil, estão colocadas em pé de igualdade de modo que uma não seja mais importante do que a outra. E cita entre outros o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Gustavo Tepedino.[16]
            A professora da USP Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka adquiriu o título de livre-docente, com a tese “Responsabilidade pressuposta”, em que, entre outras tantas lúcidas considerações, está a de estreitar o diálogo das fontes da Ciência Humana do Direito com as Ciências Sociais, que lhe poderão dar subsídios para a concepção de um conceito mais adequado de risco ou perigo, a fim de a jurisprudência evoluir, sempre mais, em termos de presunção da responsabilidade e não presunção da culpa. Pretende com isso, dar um sentido de maior equidade ao parágrafo único do art. 927 do Código Civil, ao açambarcar um número crescente de responsabilidade objetiva.
            E quanto à prevenção e precaução de dano diz a estudiosa mestra:

Afinal de contas, seria um absurdo pensar que a ordem jurídica entendesse que toda a hipótese de realização de uma atividade humana com exposição ao perigo fosse, em princípio, nefasta à sociedade, e que o banimento de toda ingerência perigosa fosse a meta de uma ordem perfeita. O que se procura, com um sistema aperfeiçoado de responsabilidade civil, não é, obviamente, evitar todo o perigo, o que é impraticável, inviável e inimaginável; a finalidade objetivada seria, isto sim, a diminuição do dano. A partir do momento em que a impossibilidade de evitar o dano é aceita, a disciplina jurídica da responsabilidade civil deveria visar a redução do custo social que ele representa, seja por meio da adoção de medidas de prevenção, ou porque alguém responderá por ele, por força de uma responsabilidade pressuposta e fundada num critério-padrão de imputação.[17]  

Em suma, a proposta é no sentido de que a preocupação que deve ganhar mais destaque segue na direção de garantir o direito de alguém não mais ser vítima de dano. É um espaço preventivo e precautório de ocorrência de dano, conjugado com o espaço da reparação de dano já existente na responsabilidade civil clássica, como consignado.
            Calçada bem construída, conservada e apta a atender a locomoção segura do pedestre tem o sentido de evitar e reduzir danos; basta se lance rápido olhar sobre as estatísticas de atropelamento. É, enfim, arredar a violência inconcebível que está a submeter o cidadão comum, colocando em risco a sua vida, que não é propriamente um direito, mas a sementeira frutuosa de todos dos direitos, tanto que a personalidade jurídica inicia-se com a vida e termina com a morte (CC arts. 2º e 6º).
            Convenha-se, demais disso, o esquecimento da calçada afeta direitos legalmente protegidos em outras legislações.
            O art. 68 do Código de Trânsito assegura ao pedestre a utilização de passeios e passagens apropriadas nas vias urbanas e nos acostamentos das vias rurais para circulação, e dispõe no § 5º: “Nos trechos urbanos de vias rurais e nas obras de arte a serem construídas, deverá ser previsto passeio destinado à circulação dos pedestres, que não deverão, nessas condições, usar o acostamento.” Manifesto que a expressão previsão de passeio usada pelo legislador é, propriamente, a sua construção para que a norma não se configure em meramente enunciativa ou programática, sem nenhum efeito prático. E mais, para que não obrigue o pedestre a usar do acostamento, que restaria como único meio de locomoção. Tanto assim que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região decidiu:

Ementa Oficial: Direito civil e administrativo. Responsabilidade por danos materiais e morais. Túnel de acesso a pedestre. Inobservância de medidas de segurança. Omissão do DNER. [...] Inequívoca é a obrigação de o DNER indenizar a autora diante da sua omissão em promover as medidas de segurança necessárias a evitar o acidente que vitimou o marido da postulante, a exemplo de colocação de proteção, sinalização e iluminação necessárias.

            E prossegue no corpo do acórdão:

O túnel subterrâneo que servia de passagem para os pedestres, como se observa da análise dos autos, foi construído sem a observância das medidas de segurança necessárias à proteção dos transeuntes, a saber, colocação de grades de proteção, sinalização e iluminação necessárias a evitar acidentes. Conforme se observa das fotos do local (f.), não existe grade de proteção entre a escada de acesso ao túnel e a calçada de pedestre, mas um murete de pequena altura, sendo possível ainda notar ser deficiente a iluminação (TRF – 5ª Reg., ApCv. 2005.05.00.008839-0/CE, 1ª T., rel. Des. Fed. Cesar Carvalho, RT 885/390 e 391).

            De outro lado, imprescindível anotar de índole constitucional conforme o disposto no art. 230, o Estatuto do Idoso, que no seu art. 10, inc. I, preceitua sobre a faculdade de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, o que, a toda evidência, antepõe-se a falta de calçada, ou aquela em rampa, quando não em precário estado de conservação ou construída com material escorregadio, que dificulta o andar da pessoa idosa e coloca em risco sua integridade física.
            A mens legis desse microssistema é a inserção do idoso na comunidade, visando possibilitar-lhe acesso ao lazer, ao atendimento médico e previdenciário, além de outros. Ora, para que interaja na vida social, o idoso vale-se da calçada como meio de caminhar. Para tanto a calçada deve ser confortável, a fim de se adequar às suas limitações deambulares impostas inexoravelmente pela sua condição física debilitada pelo decurso dos anos.
            Algumas histórias retiradas da vida real servem de exemplo. Em Batatais, cidade média do interior paulista com 60 mil habitantes, uma senhora, já nos avançados noventa anos de vida, escorregou e caiu em calçada cujo desnível prejudicou-lhe o andar. Sofreu fratura de joelho. A família foi esclarecida da responsabilidade solidária do morador fronteiriço ao piso e da Municipalidade. Vizinhos de quarteirão (vítima e proprietário do imóvel fronteiriço da calçada), com amizade cimentada há décadas, a resposta foi firme, por parte de seu filho empresário: “o que me preocupa é a higidez de saúde de minha mãe, não o problema econômico, não sou substituto do Poder Público, a providência dele vem antes da minha”. Outro fato até cômico deu-se em Ribeirão Preto, que pode ser considerada metrópole, cuja população aproxima-se dos 620 mil habitantes. Um homem de sessenta anos de idade escorregou e caiu na calçada de piso escorregadiço, que acabara de ser lavada. Coincidentemente, se coincidência existe, passava pela rua rente ao meio fio, auxiliada por bengala, uma mais idosa do que ele, que logo observou esboçando sorriso irônico: “todos caem aí”.
              Acrescenta-se a disposição específica da Lei 7.853/89, que no seu art. 2º, inc. V, letra “a”, adota a política de remoção das barreiras arquitetônicas, que infligem óbices às pessoas portadoras de deficiência em freqüentar edificações e vias públicas.
            Em síntese, o desconforto da ausência, da construção inadequada ou falta de conservação de calçada infringe o ordenamento jurídico de forma ampla e incondicional, dispensada qualquer lei municipal a regular a matéria. Diante disso, é atribuição do Ministério Público, da Defensoria Pública e entidades legitimadas precatarem os transeuntes contra acidentes evitáveis.
            Para fecho, um disparate na comparação de duas passagens. A primeira, se um automóvel encontra buraco na rua e por isso sofre amassamento na lataria, o dano patrimonial é irrespondível. A segunda, se um pedestre é atropelado no meio fio, bem rente ao que seria a calçada, naufraga sem direito, como no caso citado da Comarca de Franca. Assegura-se o patrimônio e despreza-se a pessoa humana. Que ordenamento jurídico é esse que exige vias públicas carroçáveis bem conservadas, mas não reconhece o direito do pedestre de andar em segurança?
            É uma exegese marcadamente patrimonialista, não propriamente entre seres humanos, de sorte que os interesses pessoais são suplantados pelos patrimoniais, em absoluta contrariedade ao art. 1º, inc. III, da Constituição Federal, que considera a pessoa humana como centro do Direito.
           




4 Cessão indevida de espaço de uso comum do povo
            Também relega o pedestre a cessão do espaço público de uso comum do povo. É a privatização das ruas, praças e calçadas em proveito de alguns e consequente detrimento da maioria, sem falar no afeamento do urbanismo.
            Os bens públicos de uso comum do povo devem ser utilizados para a finalidade a que se destinam. A rua para o tráfego de veículos, a calçada para o caminhante e a praça para o lazer.
            No entanto, são comuns as revistarias e os denominados carrinhos de lanches estabelecidos em logradouros públicos, nomeadamente estes últimos que estacionam nas ruas e avenidas, tomando o leito carroçável, quando não próximos de esquinas, colocando em risco a integridade física do pedestre ao empreender travessia.
            Fato real merece menção. Desditosa viúva de mais de 70 anos de idade, residente em Batatais, ao transpor a rua foi atropelada, sofrendo lesões corporais graves. Talvez não tomasse o cuidado objetivo, mas o carrinho de lanches, que persevera no mesmo local, foi fato determinante, pois que estacionado muito próximo à esquina, impede a visão de segurança. A culpa da Municipalidade na outorga do alvará torna o evento lesivo de nexo causal complexo, a visada da responsabilidade solidária em que o dano é produzido por mais de um autor (CC art. 942 in fine). De fato, o local ocupado não se mostra adequado às leis de trânsito.
            Esses carrinhos de lanches, na sua maioria, não atendem o mínimo necessário na preservação da saúde pública, uma vez que desprovidos de água corrente e, por vezes, fazem uso clandestino de energia da rede pública, onerando a todos indiscriminadamente. Ocupam com mesas e cadeiras as calçadas, espalham ao derredor odor de fritura, restos de comida, guardanapos de papel, vasilhames de bebidas, copos plásticos, avançam à noite admitindo a presença de menores nas saídas noturnas das escolas.
            Demais disso, inibem o comércio regular em bem montadas lanchonetes, pois a concorrência torna-se, por óbvio, desleal ante a carga tributária. A legislação, que tanto exige para o comércio regular das casas de alimentação, parece indiferente ao ambulante. Ambulante somente no nome, dado que o vocábulo em questão significa andante, nômade, peregrino, e é como tal que o alvará municipal autoriza seu funcionamento. Seria o carrinho de lanches circulando, quando, na realidade, fica estacionado, definitivamente, em certo espaço público da rua ou praça, que lhes torna de uso privado. Evidente burla a lei, pois as exigências para o comércio fixo são maiores, entre elas a necessária disposição de sanitários.
            Mais ainda. Se as revistarias e os carrinhos de lanches tomam com exclusividade certo espaço público caracteriza-se a permissão de uso, que para o legislador equipara-se a alienação, pois nesse sentido dispõe o art. 17, inc. I, al. f, da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. Urge cumprir os requisitos expostos nesse artigo: a) interesse público devidamente justificado; b) avaliação prévia para fixar o valor e a periodicidade de contraprestação pecuniária a ser paga pelo particular que se beneficiará da exploração do bem público; c) autorização legislativa específica indicando o bem a ser permitido e os limites a serem observados; d) licitação na modalidade da concorrência.[18]
            Demais disso, há de se considerar a recente Lei 13.019, de 31 de julho de 2014, que exige no seu art. 2º o “chamamento público” para quaisquer parcerias, com muito mais razão para a cessão de espaço público, a fim de que “se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos”.
O bem de uso comum do povo não pode ser concedido gratuitamente, uma vez que pertence à coletividade, assim os favorecidos com a sua utilização exclusiva devem compensar os demais, que foram excluídos do privilégio. A gratuidade também prejudica a realização do certame licitatório, desde que o valor da contraprestação pecuniária é de ordinário o parâmetro utilizado para a seleção do beneficiário.
A situação agrava-se ainda mais. Em Batatais foi editada uma lei autorizando os carrinhos de lanche a procederem a ligação de energia elétrica com medidor próprio, o que denuncia que são estacionados em locais que lhes ficam definitivos. É uma lei de notável impropriedade, imposta pela pressão social de um grupo, casuística e nada técnica, de sorte contraditória em si mesma, pois o alvará emitido é de comércio ambulante.
            Mas, sobretudo, é o pedestre que vai sendo restringido no uso de áreas que lhe seriam próprias, ultrapassando, em outros casos, o mais comezinho bom-senso, no retorno a uma época de infeliz memória, quando as praças e jardins eram tomados pela construção de prédios públicos.
Determinada praça central tomada por dois prédios, um deles construído em 1927 e outro em 1950, destacava a arquitetura do primeiro, sinete a caracterizar o meio ambiente cultural daquele período, tanto que mereceu destaque em dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.[19]
Na sua parte de trás o espaço da praça com árvores, arbustos ornamentais e bancos para descanso, defronte de um clube recreativo. Dez vereadores votaram pela desafetação desse espaço, construindo novo prédio, anexo ao antigo, retirando deste a plástica arquitetônica na sua inteireza.
O novo prédio não atendeu a legislação sobre a matéria, não tem as quinas das esquinas quebradas e não previu a demanda de estacionamento, debalde disposição a respeito na legislação municipal.
O nefasto resultado da falta de planejamento foi o adensamento do trânsito em área já saturada, o que levou a outra parte da praça, a fronteiriça, transformada em estacionamento de veículos oficiais, outro gritante exemplo de urbanismo superado.
Enfim, prédios públicos, no curso dos anos, reduziram o que antes era uma praça ampla e bonita, acolhedora e confortável, mas aos pouco perdeu a urbanização, pois anteriormente mutilada com a abertura de duas ruelas. Uma para abrigar ponto de taxi, outra insipiente centro de comércio popular sem esmero estético, e nenhuma providência foi tomada, o que salienta ainda mais o desleixo às coisas do homem andando.
Não é matéria indiferente ao Ministério Público, em modelar pronunciamento decidiu o Supremo Tribunal Federal:

Ementa Oficial: Agravo regimental com recurso extraordinário. 2. Recurso que não demonstra o desacerto da decisão agravada. Decisão em consonância com a jurisprudência dessa Corte. 3. O Ministério Público está legitimado para propor ação civil pública na defesa do patrimônio público (art. 129, III, da Constituição). Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, 2ª T., AgRg no RE 302.522-8/SP, rel. Min. Gilmar Mendes,   in RT 873/125).

            Nota-se, o acórdão proferido em recurso interposto contra o Ministério Público Estadual e o Município de Indaiatuba menciona precedentes, uma vez que, seguidamente, aquela Corte tem entendido que a Instituição, quando atua na proteção do patrimônio público, por via de ação civil pública, está legitimada como substituto processual da coletividade na defesa de interesse que atinge a todos, de maneira indistinta, conseguintemente reveste-se da natureza de interesse difuso.[20]
            Os espaços públicos concedidos não podem prescindir do cuidado estético da cidade, e nada compromete mais a boa aparência urbana que a impropriedade desses pseudos veículos e minúsculos arranjos adaptados, de proporções desiguais e pinturas precárias, contrastando com prédios residências e comerciais bem cuidados e de beleza arquitetônica. Os franceses falam em proteção paisagística e monumental, e os italianos estão a dar exemplos com a edição de medidas legislativas protetivas, como o Código de Bens Culturais e da Paisagem.[21] Na legislação pátria o Estatuto da Cidade refere-se à proteção paisagística nos arts. 2º, inc. XII, 35, inc. II, 37, inc. VII. Que não se esqueça, a paisagem deve ser entendida como patrimônio público.
            Exemplos precursores, que merecem reconhecimento, foram os adotados pelo Ministério Público de Franca e São Joaquim da Barra, que afastaram os carrinhos de lanches das vias públicas, com amplo respaldo da opinião pública e entidades representativas de classes, preocupadas com a boa urbanização de suas cidades.
            Outro exemplo é dado por Poços de Caldas, que confinou todos os carrinhos de lanche em um mesmo local, onde não existe trânsito de veículos e preserva o aspecto estético da cidade, que é turística.

5 Conceito amplo de meio ambiente e a perturbação do sossego público
            Outra matéria que se relaciona ao urbanismo é a perturbação do sossego público com repercussão no meio ambiente. Assinala a Constituição da República no art. 225 que é direito de todos o meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida.
            Entre os elementos nocivos ao meio ambiente está a poluição sonora, que tem desafiado décadas e até séculos pelo persistente desrespeito aos direitos alheios.
            Em seguida à Proclamação da Independência, D. Pedro I, em cumprimento ao art. 167 da primeira Constituição Brasileira, editou a Lei de 1º de outubro de 1824, criando as Câmaras Municipais, entre as suas atribuições impunha que deveria prover “por suas Posturas sobre as vozeiras nas ruas em horas de silêncio”.
            Já no distante ano de 1932, a pedido do Instituto dos Advogados, José Manuel de Azevedo Marques apresentou projeto de lei à Câmara Municipal de São Paulo, propondo combater os barulhos evitáveis, e embasou a sua exposição de motivos em pareceres, “demonstrando, a não deixar dúvidas, os grandes males dos ruídos à saúde física, intelectual e moral e à felicidade humana”, especialmente ao transcrever lição do “Professor Henrique Roxo, distinto médico-cientista”, que entre outras afirmações destaca “a influência do barulho na gênese das doenças nervosas.”[22]
            Washington de Barros Monteiro mais recentemente tracejou a seguinte lição:

A poluição sonora provoca distúrbios no organismo, diminuição do trabalho intelectual e cansaço físico. Neutralizando o repouso, impede que recuperemos as nossas forças e energias. Na defesa desse bem jurídico tão necessário ao desenvolvimento de nossas atividades, tem a jurisprudência proclamado que contra o mesmo atentam as algazarras resultantes de bailes das vizinhanças, o funcionamento de alto-falantes de maneira incômoda, o barulho produzido por animais do vizinho, o ruído noturno de oficinas instaladas nas zonas mistas, o ruído incômodo de motores, no período noturno, para sucção de água, a vibração produzida por indústrias, e até o badalar dos sinos das igrejas, sem necessidade de culto.[23]

            Modelar o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, 1ª Câmara, apelação 64.171, tendo como relator o Desembargador Lúcio Urbano, julgado em 29 de maio de 1984, que na observação do cotidiano relatado em publicações da empresa, enfatiza em extrato deveras esclarecedor.

Entre nós, César Cals de Oliveira Neto, em entrevista concedida ao diário carioca O Globo, em 4.3.79, “destaca o ruído como principal causa de problemas auditivos nas grandes cidades, além de reduzir o nível de qualidade de vida nas comunidades e contribuir para a perda de produtividade [...]. Já o assessor para assuntos ambientais da Secretaria de Ciências e Tecnologia de Minas Gerais, Prof. Henrique Alves, membro da Comissão de Meio Ambiente da Sociedade Mineira de Engenheiros, confirmou recentemente que os ruídos, em algumas regiões de Belo Horizonte, já atingiram níveis perigosos para o ser humano, e que a surdez e o stress são os males mais frequentemente causados pela poluição sonora (Estado de Minas Gerais, 21.8.82). A propósito, pesquisas divulgadas pela Agência de Proteção ao Meio Ambiente da América do Norte, apontam que “Os estudos até agora efetuados sugerem que os ruídos estressantes podem provocar hipertensão arterial, lesões cardíacas, úlceras, e, posteriormente, até maior susceptibilidade a infecções e problemas de reprodução. Outros estudos indicaram dificuldades de aprendizado, irritabilidade, fadiga, eficiência reduzida no trabalho, aumento de acidentes e erros, e conduta socialmente indesejável” (O Estado de São Paulo, edição de 28.11.82).

            Bem por isso, a UNESCO elaborou a Carta do Silêncio, proclamando que todo indivíduo tem direito ao silêncio e à tranqüilidade.
            Há de se notar, as citações até aqui colacionadas pertencem a um tempo que já se foi. O mundo moderno acelerou os malefícios da poluição sonora. Vivencia-se, hoje, a alucinada ânsia do progresso material a todo custo, falacioso na maioria das vezes, e que se vale de artefatos sonoros sempre mais potentes na divulgação de produtos, serviços, liquidações e outras tantas promoções, que se transformaram em agentes de enorme desconforto acústico. Os sons dos mais diversos estabelecimentos comerciais se esgrimam nos centros urbanos.
            Causa pasmo, até os famosos “trenzinhos de crianças” são equipados com aparelhos sonoros em decibéis perniciosos à saúde auditiva, como assim as festas infantis. Se os pais podem ignorar, as autoridades têm o dever de conhecer a disacusia, que é o molestamento do órgão auditivo submetido à elevada pressão sonora, levando à surdez.
            Na verdade, o trânsito já é um atentado ao silêncio pelo inevitável ronco dos veículos motorizados. Agora, esses mesmos veículos estão dotados de aparelhos sonoros que prejudicam a segurança do próprio trânsito. Não se ouve o apito do guarda de trânsito, que é um ato administrativo sonoro. Não permite ouvir a buzina de quem com eles reparte a via pública, muitas vezes necessária para alertar situação de redobrada atenção, quando não de potencial risco, tanto que a Resolução nº 204, de 20 de outubro de 2006, do CONTRAN, considera “que a utilização de equipamentos com som em volume e frequência em níveis excessivos constitui perigo para o trânsito”. Não se olvidem os escapamentos propositadamente envenenados, que potencializam o barulho, especialmente entre motociclistas. Será que o som alto prejudica menos a atenção do motorista do que a tão combatida conduta de falar ao celular? Aqui reside uma das muitas situações em que impera a máxima: no Brasil tem lei que pega e lei que não pega. É a prevaricação no sentido de não cumprimento de um dever de ofício por má-fé ou improbidade.
            De fato, o art. 228 do Código de Trânsito considera infração grave, impondo a penalidade de multa e apreensão do veículo, com medida administrativa de sua remoção para perícia, pelo uso indevido de equipamento sonoro em volume ou frequência que não sejam autorizados pelo CONTRAN.[24] E no art. 229 completa que o uso de aparelho de alarme ou que produza sons e ruído que perturbem o sossego público, em desacordo com as normas fixadas pelo CONTRAN, é infração média, com os mesmos consectários de multa, apreensão e remoção.
            Considere-se ainda que automotores particulares, dotados dos mesmos equipamentos sonoros não homologados, prestam-se para publicidade em geral. E os meios legais, rádios, televisão, jornais e revistas veem-se privados de receita, mais uma vez pela concorrência desleal, uma vez que essa atividade é desenvolvida na maioria das vezes clandestinamente, embora à vista de todos, isto porque nem sequer é expedida a licença municipal e procedido o recolhimento da taxa correspondente.
            O som sem fronteiras penetra nos lares e ambientes de trabalho, nos hospitais e escolas, impiedosamente. O art. 3º, inc. I, última figura, da Constituição Federal que contempla o princípio da solidariedade social é relegado, o art. 42, III, da Lei das Contravenções Penais torna-se letra morta, juntamente com o art. 54 da Lei do Meio Ambiente. O art. 1.277 do Código Civil que trata dos direitos de vizinhanças, por ser iniciativa individual repercute apenas entre as partes, sendo que as infelizes vítimas sempre se deparam com a grave dificuldade de produzir prova, mormente a técnica indevidamente exigida em reiteradas decisões. É uma sequência de desrespeito às leis que arrefece o animo dos cidadãos comuns, e os conduz a suportar a inconveniência do barulho prejudicial ao sossego e à saúde.
            Ao lado dessas constatações, joeirando a jurisprudência são encontrados acórdãos modelares. Antecipação da tutela a fim de proibir república de estudantes de promover badernas, algazarras, festas, churrascos e outras comemorações ruidosas a qualquer hora do dia ou da noite (TJSP, 26ª Câm. de Dir. Privado, AI nº 990.10.48274-1, rel. Des. Felipe Ferreira, j. 2.2.2011); antecipação de tutela em virtude de poluição sonora provocada por excesso de ruídos provenientes de ensaios musicais em residência (TJRS, 18ª Câm., AI nº 70003573029, rel. Des. Luiz Planella Villarinho, j. 7.3.2002); construção que se utiliza de bate-estacas, escavadeira e caminhões, que incomodam os vizinhos de modo a provocar barulho, poeira e chuvas de detritos (extinto 2º TACivSP, 12ª Câm., Apc/Rev 634160-00/0, rel. Juiz Palma Bisson, j. 20.6.2002, RT 807/300); desassossego e desconforto pelas turbações acústicas capazes de gerar prejuízos ensejadores de danos morais (extinto 2º TACivSP, 11ª Câm. Apc/Rev nº 836061-0/7, rel. Juiz Egídio Giacoia, j. 23.8.2004, RT 830/259).
            Essa progressiva escalada da poluição sonora mereceu do legislador de 2002 legítima preocupação. O Código Civil de Bevilaqua no art. 554 emprega a expressão uso nocivo, já o de Reale no art. 1.277 prefere uso anormal. Nocivo é pernicioso, prejudicial, que causa dano. Anormal é o que foge do ideal, do arquétipo, é dizer, amplia o conceito ao prever interferências de menor potencial ofensivo, pretensão que já vinha expendida na doutrina. E é permitido ir mais longe conforme oportuna resenha da advogada Rosana Jane Magrini:

O silêncio nestes dias altamente estressantes em que vivemos, deve ser compreendido como um direito do cidadão. E sob este enfoque, haveria que se buscar não só um Código de Silencio com medidas repressivas rigorosas. Mais que isso, é também preciso um programa de educação da população no sentido de se formar uma consciência mais sólida sobre a necessidade de respeitar a tranquilidade alheia, seja no período noturno ou diurno, seja em área residencial ou comercial.[25]

            Nítido, por conseguinte, que a perturbação ao sossego é afronta ao direito do cidadão, atinge a sua casa, que além de asilo inviolável, deve assegurar-lhe o merecido descanso, a proteção de sua saúde, em especial para que se refaçam as forças do trabalho, que para maioria começa nas primeiras horas do amanhecer do dia seguinte. De tão intensa e reiterada, essa perturbação deve ser considerada em função do interesse público. É o entendimento de Luiz Edson Fachin.

Por esse caminho que conjuga tutela e limite transita o novo Código Civil. A garantia do direito ao sossego não envolve apenas o campo do Direito Civil; a temática alcança medidas diversas, sancionatória das condutas que ofendem a paz e a tranquilidade da vizinhança. Com efeito, é o direito ao sossego assunto de interesse público, qualidade que lhe confere aptidão de incidência do poder de polícia. Dúvida não há, desde a codificação anterior, do alcance amplo na tutela jurídica ao sossego.[26]

            De efeito, tal enfoque remonta à vetusta lição de San Tiago Dantas.

Se o mau uso da propriedade, no que toca ao sossego, adquire um caráter de generalidade, de sorte que afeta mais ao público, a uma fração do público, do que propriamente a uma pessoa, o caso cai, naturalmente, sob a ação do poder de polícia.[27]

É evidente, o sossego que a lei ampara é o relativo, o que se pode exigir em determinadas condições, sem prejuízo das atividades normais da vida em sociedade. O que conduz ao critério da tolerância e da intolerância das imissões, daí decorre a amplitude que a lei permite ao magistrado, à sua função criadora, que muitas vezes independe de autorização de lei expressa, para que se submeta aos princípios sugeridos pelo interesse coletivo. Permitem-se as interferências ordinárias à vida moderna, posto que inevitáveis e inerentes ao próprio progresso que traz conforto, mas com energia repugnam-se aquelas evitáveis, para que a vida nas cidades não se torne, cada vez mais, verdadeiro atentado aos hábitos saudáveis de seus habitantes.[28]
            Também nesse aspecto a legitimidade ministerial está patenteada em acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, alteado em parecer da Procuradoria de Justiça, pela pena de Darci de Oliveira:
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Ementa Oficial: [...] A Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente é parte legítima para postular o impedimento de realização de festa que restringe o acesso a logradouros públicos, e que pode degradar o meio ambiente pela produção de detritos e poluição sonora. A existência de legislação sobre a produção de sons não impede o requerimento, pelo Parquet, de proibição da utilização de equipamentos musicais que emitam sons com decibéis acima do permitido. Interesse processual evidenciado. A intervenção do Judiciário pode correr não só quando da existência efetiva do dano, mas também quando de seu fundado receio [...] (TJRN, 3ª Câm. Cív., ap. 2000.003425-8, rel. Juiz Kennedi de Oliveira Braga convocado, j. 23.03.2006, RT 851/332).

            No mesmo sentido o recente acórdão proferido pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em ação civil pública impetrada pelo Ministério Público, lucidamente dispensando a prova pericial pela robustez da prova oral produzida.

Ementa Oficial: Ação Civil Pública. Obrigação de não fazer. Poluição sonora. Imóvel destinado à locação para festas e eventos. Prova técnica. Prescindibilidade. Hipótese em que os depoimentos pessoais das testemunhas corroboraram as alegações ministeriais, tornando desnecessária a medição de ruídos provenientes do local. 1. Os ruídos urbanos são, hoje, considerados fatores altamente prejudiciais à população urbana, razão pela qual, além da disposição genérica do Código Civil que permite ao proprietário impedir que o vizinho perturbe o seu sossego (art. 1.277), o Poder Público vem alargando, por normas regulamentares, as exigências do silêncio, e os tribunais não têm negado ação, quer aos particulares, à Municipalidade, quer ao Ministério Público, para impedir os ruídos molestos aos vizinhos, individualmente, ou à coletividade em geral. 2. Demonstrando a prova testemunhal que os distúrbios noticiados nos autos se referem à realização de eventos noturnos com níveis muito altos de emissão sonora, de se confirmar a sentença que impôs a proibição no que concerne aos eventos/festas, sendo prescindível, para tanto, a realização de prova pericial (TJMG, 5ª Câm. Civ., rel. Des. Mauro Soares de Freitas, j. em 18.03.2010, RT 987/295).

            Outro acórdão modelar não pode deixar de ser citado.

Ação Civil Pública – Poluição sonora – Degradação do ambiente urbano causado pelo funcionamento irregular de estabelecimentos comerciais, com perturbação do sossego de determinada região – Legitimidade ad causam do Ministério Público para promover a demanda – Interesses que não podem ser classificados como individuais puros, eis que se espraiam entre diversos titulares situados próximos às fontes poluidoras, circunstância suficiente para que os interesses se insiram na categoria de difusos, coletivos, ou, ao menos, individuais homogêneos – Inteligência do art. 1º, I e IV, da Lei 7.347/85 (TJSP, ap. 64.055-5/7, 9ª Câm., j. o8.09.1999, rel. Des. Sidnei Beneti, RT 774/230).
       
Para Rogério Gesta Leal a necessidade de conciliar o desenvolvimento da cidade, a sua expansão demográfica e a sua trajetória econômica com hábitos saudáveis de vida, preservando o ambiente puro e agradável, é um dos desafios do momento presente.[29] O direito difuso ao sossego constitui-se um desses desafios, como dispõe o Estatuto da Cidade ao propugnar por “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ecológico”. Em suma, trata-se da proteção à própria saúde física e mental do ser humano.
Esse atentado ao urbanismo saudável prospera indiscriminadamente, tanto assim que, conforme noticiário da grande imprensa, recentemente as Prefeituras de São Paulo, Taboão da Serra, Caraguatatuba, Franca, entre outras, editaram leis para combater o que o vulgo passou a chamar de “pancadão”. Não poucas vezes tal crime ambiental é animado pelos veículos dotados de aparelhos sonoros de alta potência que, em trânsito ou estacionados, transformam-se em intolerável perturbação ao sossego público, acoimando os seus proprietários de “vândalos do som”. Para completar as citações de cidades que se sentem prejudicadas, na edição de 18 de abril de 2014, a Revista Revide estampa reportagem de capa, ouvindo médicos, psicólogo, advogado, empresários da construção civil, todos unânimes em preconizar a necessidade de combater o barulho excessivo, que causa prejuízo ao bem-estar do citadino.
Crime ambiental porquanto, recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pioneiramente, entendeu que a perturbação do sossego público é crime contra o meio ambiente.

Ementa Oficial: Crime ambiental. Poluição (art. 54 da Lei 9.605/1998). Entidade que produz nível excessivo de ruídos durante a realização de bailes em período noturno. Provas seguras de autoria e materialidade. Palavras coerentes e incriminatórias de testemunhas. Laudos periciais constatando o excesso de barulho. Versão exculpatória inverossímel. Desclassificação para a contravenção prevista no art. 42, III, da LCP. Impossibilidade. Condenação imperiosa. Responsabilização inevitável. Apenamento criterioso. Apelo improvido (TJSP, ap. 990.09.322736-3, 4ª Câm. Criminal, j. 27.07.2010, v.u., rel. Des. Luís Soares de Melo, RT 904/618).[30]

            A proposta de entender a poluição sonora atentado aos direitos da personalidade e ao meio ambiente difundiu-se, é mundial: “Nos direitos da personalidade incluem os direitos ao repouso, ao descanso, ao sono e ao sossego, bem como a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado”, assim decidiu o Tribunal de Relação de Lisboa.  
            Por último, assinala-se que a responsabilidade de apuração dos ilícitos administrativo, civil e penal emanados da poluição sonora é, primordialmente, da Polícia Judiciária, contudo cumpre também às Municipalidades, conforme entendimento exarado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 5ª Câmara Civil, em acórdão de 24 de agosto de 2011.
Apelação Cível nº 70041121880, rel. Des. Marques Ribeiro Filho: “Apelação Cível. Responsabilidade civil. Preliminar contrarrecursal. Ente Municipal. Legitimidade passiva configurada. Dever de fiscalização e de adoção de medidas a reduzir a poluição sonora. Imposição judicial. Descumprimento. Omissão específica. Responsabilidade objetiva. Indenização devida. Sentença modificada. O Município tem legitimidade para responder aos termos da ação, uma vez que tem o dever de empregar medidas tendentes à redução da poluição sonora na cidade e, sobretudo, tinha o dever imposto judicialmente, de fiscalizar a área. Uma vez desatendida as determinações impostas judicialmente, em ação cominatória e em ação civil pública, o Município responde objetivamente pelos prejuízos ocasionados aos autores, na conduta de moradores afetados por enorme poluição sonora. Indenização devida...”  (Ap. Cívvel nº 70041121880, 5ª Câm. Cív., TJ/RS, rel. Des. Romeu Marques Ribeiro Filho, j. 24.08.2011, in VLEX, versão gerada pelo usuário Faculdade de Direito de Franca).


            De efeito, este o aresto, em tema de responsabilidade civil, julgou que o Município tem o dever jurídico de fiscalizar e adotar medidas preventivas que evitem a poluição sonora. Assim porque, o art. 30, inc. VIII, da Carta Magna estabelece a competência municipal para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”, e o art. 182 define que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.
            Apesar de todo esse aparato legislativo, a Folha de São Paulo, Caderno Ribeirão, de 29 de setembro de 2014, estampou a seguinte notícia: “Evento de Barretos quebra recorde de maior tremor de som”.
            É de estarrecer a perfídia dos promotores de espetáculo tão desnecessário quanto condenável: “A ideia é mostrar aos que apreciam som, que é possível fazer o chão tremer, mas em lugar apropriado, sem incomodar as outras pessoas”. Ora, o evento foi realizado no Recinto da Festa do Peão, zona urbana, e executado, simultaneamente, por 600 veículos, criando “o maior tremor de terra provocado por aparelhos de som... o equivalente a um tremor causado por 400 quilos de explosivos”. O sismógrafo para medição foi colocado a 500 metros de distância. Como “sem incomodar outras pessoas”? Porém a perfídia vai além: “... um dos organizadores do evento, disse que a intenção com o recorde foi chamar a atenção para o som automotivo e reunir quem gosta de música”. Ledo engano. Música e som explosivo não guardam sinonímia. Figurar no Guiness Book como o maior tremor de terra provocado por aparelhos sonoros não enaltece, em nada, a atraente Barretos, pois se trata de crime ambiental.

6 Proposta conclusiva
            Norberto Bobbio preconiza que atualmente em relação aos direitos humanos não basta fundamentá-los, o essencial é protegê-los.[31] E se não assegurados pela via preventiva por meio de campanha educativa, o Poder Judiciário destina-se a garanti-los. Urge utilizar os dois meios para que se implantem políticas públicas que se ajustam ao cotidiano do cidadão no resgate da cidadania. É o direito de caminhar pela calçada confortavelmente. De preservar os espaços públicos para todos indistintamente, sem permitir privilégios. O direito de repouso para a jornada de trabalho que, bastas vezes, começa na madrugada do dia seguinte. Enfim, é o amplo direito de segurança, bem-estar e saúde física, psicológica e mental.
            É memorável o artigo de Fábio Konder Comparato, publicado na Folha de São Paulo no dia 12 de agosto de 2004 sob o título “As classes dominantes sempre atuaram por conta e no benefício exclusivo dela”, comentando matéria divulgada na revista britânica The Economist, edição do dia anterior, a qual divulgou a pesquisa em 18 países latino-americanos, onde 71% estão convencidos de que os governos são voltados para os interesses das classes dominantes. É da pena do festejado mestre as seguintes ponderações:

[...] a verdadeira essência da democracia consiste na ação prioritária dos Poderes Públicos em favor das classes pobres e dominadas. Tal significa dizer que a ação política prioritária em favor dos fracos e pobres numa autentica democracia, supõe a existência de um Estado forte e bem organizado, constitucionalmente competente para impor a sua vontade às classes dominantes no plano internacional. Ou seja, exatamente o oposto do Estado subserviente, engendrado pelo atual capitalismo globalizante.

            Na análise desta substanciosa advertência, dispôs Urbano Ruiz, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Propõe, assim, de um lado, a ampliação da competência dos órgãos estatais, cujo preenchimento não está sujeito à influência das classes dominantes, como o Judiciário e o Ministério Público, para que eles imponham ao Executivo e ao Legislativo a elaboração e a ampliação de políticas destinadas à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Deposita esperanças reforçadas nos juízes e promotores independentes, que ascenderam ao cargo mediante aprovação em concurso, sem dever favores políticos e, por isso, qualificados para a defesa de valores que permitam uma sociedade mais justa, igual e solidária. É preciso, pois, que não decepcionem.[32]

            Bem nesse sentido as três matérias versadas, que visam exatamente transmudarem da vida do texto para a vida prática o art. 182 da Constituição Federal, com a adoção de políticas urbanas que objetivem o ordenamento do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantam o bem-estar de seus habitantes.
            Embora delas todos se aproveitem, a classe dominante vive em bairros residenciais guarnecidos por calçadas bem cuidadas, tem portas e janelas brindadas com antirruidos, frequenta lanchonetes. De outro lado, a parcela mais numerosa da população e modestamente representada pelos poderes eletivos, clama por essas providencias possíveis de serem evitadas, pois encontram amplo conforto na legislação posta. Classe que, por ser hipossuficiente em vários aspectos, desde a sua impotência econômica até pelo desconhecimento quanto aos meios de defesa de seus mais lídimos direitos, mais necessita do apoio dos órgãos públicos.



[1] ROSAS, Roberto. A cidade e seu estatuto jurídico, obra coletiva: O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas – Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin (coordenadores). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 678.
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal urbano, vol. I, 2 ed. São Paulo: RT, 1964, p. 307 e 308. BALTAR, Antônio Bezerra, Introdução ao Planejamento Urbano, 1947, p. 138.
[3] MEIRELLES, Hely Lopes, id.. 307.
[4] MELLO, Luiz Anhaia. Engenharia e Urbanismo, 1954, p. 7.
[6] Capital Natural, Band News, entrevista com a Deputada Federal Mara Gabrili e com o Diretor do Portal Mobilize Brasil Marcos de Souza, levado ao ar em 24 de outubro de 2013.
[7] ALENCAR, José de, crônica publicada 29 de outubro de 1854, sob o título: O Passeio Público. A flânerie. A limpeza e a Câmara Municipal. Desembarque na Criméia. Um fenômeno teatral. In crônicas escolhidas. São Paulo: Editora Ática, s/d., p. 30 e 31. Nessa quadra, era notória a influência francesa nos usos e costumes locais.
[8] ADORNO, Roberto. El Principio de Precaución: un Nuevo Standart Juridico para la Era Tecnologica. Diario La Ley, Buenos Aires, jul. 2002, p. 1 e segtes. Eis parte do texto: “En el caso de la prevención, la peligrosidad de la cosa o actividad ya es bien conocida, y lo único que se ignora es si el daño va a producirse en un caso concreto. Un ejemplo típico de prevención está dado por las medidas dirigidas a evitar o reducir los prejuicios causados por automotores. En cambio, el caso de precaución, la incertidumbre recae sobre la peligrosidad misma de la cosa, porque los conocimientos científicos son todavía insuficientes para dar una repuesta acabada al respecto. Dicho de otro modo, la prevención nos coloca ante un riesgo actual, mientras que en la supuesto de la precaución estamos ante un riesgo potencial.”
[9] CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito, tradução de Antônio Carlos Ferreira. São Paulo: Lujus, 1999, p. 103.
[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 18 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 936 e 937.
[11] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, 23 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 654 a 657.
[12] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 38 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 718.
[13] MUKAI, Toshio. Direito administrativo sistematizado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 527 e 528.
[14] As conclusões e iterativa jurisprudência são extraídas do acórdão transcrito na RT 863/347 a 350.
[15] AZEVEDO. Antônio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. RT 797/22, grifo no original.
[16] SILVA, Jorge Alberto Quadros de Carvalho. Responsabilidade objetiva: o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor, in Revista da Escola Superior da Magistratura, ano 6, número 1, julho/dezembro de 2005, p. 29 a 40.
[17] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 352.
[18] BACCO, Sidnei di. Utilização particular de bem público. www.tdbvia,com.br/arquivo/web/utilizaçao%20particular%20de%20bem%20publico.pdf, acesso em 11.8.2014, 16h30.
[19] DUTRA, Maria Stella Teixeira Fernandes. A arquitetura de Batatais, de 1880 a 1930, vol. 2, 1993, p. 317 a 325, cópia do arquivo pessoal.
[20] Precedentes citados no corpo da decisão: RE 208.790, 1ª T., rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 15.12.2000, RE-AgRg. 368.060, 1ª T., rel. Min. Eros Graus, DJ 28.10.2005, RE-AgRg 372.658, 2ª T., rela. Mina. Ellen Gracie, DJ 03.02.2006.
[21] MEIRELLES, Hely, obra citada, vol. I, p. 336 e 337. CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Novas fronteiras do Direito Urbanístico, in O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas – Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lima. Gustavo Tepedino e Luiz Edson Fachin (coordenadores). Rio de Janeiro: Renovar, 2008,  p. 700.
[22] Revista dos Tribunais, vol. 83, p. 3 a 18.
[23] MONTEIRO, Washington de Barros. O uso nocivo da propriedade. Revista Forense vol. 249, p. 395 a 399.
[24] Resolução do CONTRAN nº 204, de 20.10.2006, regulamenta o volume e a frequência dos sons produzidos por equipamento utilizados em veículos e estabelece a metodologia para medição a ser adotada pelas autoridades de trânsito e seus agentes.
[25] MAGRINI, Rosana Jane. Poluição sonora e lei do silêncio. Revista Jurídica, Porto Alegre, ano 43, nº 216, p. 20 a 23.
[26] FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil: direitos das coisas, vol. 15, coordenador Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, p. 53. Nesse mesmo sentido, o estudo de Mário Helton Jorge, Direito ao sossego, Paraná Judiciário, p. 31 a 44.
[27] DANTAS, F.C. de San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. Rio de Janeiro, 1939, p. 43.
[28] DANTAS, F. C. de San Tiago. Id., p. 43, 90, 235 e seguintes.
[29] LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 148.
[30] Em sentido contrário: RT 861/678.
[31] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 63.
[32] RUIZ, Urbano. A utilidade do Judiciário para questionar e obrigar a Administração a desenvolver políticas públicas, in Revista da Escola Superior da Magistratura, ano 6, número 1, julho/dezembro de 2005, p.17 e 18.

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