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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Autotutela

1 Conceito de Autotutela

No atual estágio da civilização não se permite que a pessoa seja juiz e parte ao mesmo tempo. A ninguém é permitido fazer justiça pelas próprias mãos, figura típica no Código Penal sob a rubrica de exercício arbitrário das próprias razões. Dispõe o seu art. 345: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite.” E impõe a pena de detenção e multa.
Diferentes condutas revelam-se como estorvo à regular atuação da justiça, mas o exercício arbitrário das próprias razões é a sua mais saliente negação, de sorte a pessoa despreza a sua intervenção, incentivando a sua descrença, com evidente dano para o Estado[1].  Bem por isso, se alguém tem pretensão que lhe reserva o direito objetivo, querendo exercitá-la conforme lhe permite o direito subjetivo, deve invocar o Estado-Juiz para satisfazê-la.
Há casos, por vez ou outra, que impõem exceções, como foi expendido por mais de uma vez no curso da obrigação de dar coisa certa quando advém melhoramentos ou acrescidos. O vigente Código Civil acrescenta dois dispositivos inéditos no sistema revogado, ao tratar das obrigações de fazer e de não fazer, que não se acomodam na legítima defesa nem no estado de necessidade, mas na autotutela, também cognominada de autodefesa.
O art. 249 aborda a obrigação de fazer fungível, permitindo ao credor, havendo recusa ou mora do devedor, que execute o ato à custa deste, sem prejuízo da indenização devida. O seu parágrafo único reza: “Em caso de urgência, poderá o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.” Já o art. 251 refere-se à obrigação de não fazer, autorizando o credor a desfazer o ato, cuja abstenção comprometera-se o devedor, à custa deste e da mesma forma sendo depois ressarcido. O seu parágrafo único dispõe: “Em caso de urgência, poderá o credor desfazer ou mandar desfazer, independentemente de autorização judicial, sem prejuízo do ressarcimento devido.”
Na cabeça dos dois artigos, o credor deverá recorrer ao Poder Judiciário. O que não acontece nos dois parágrafos, que se referem à autotutela, demonstrando que ela se caracteriza pela urgência e pela reposição da situação ao estado anterior a manu propria do credor, isto porque se a justiça fosse chamada a intervir não o faria em tempo útil, e o credor experimentaria prejuízo injusto.
É possível imaginar situações em que a urgência no cumprimento da obrigação torne imperiosa a execução de pronto. Certo fazendeiro cultiva 12 hectares de terra em batata inglesa, localizado esse torrão à jusante de um riacho, que lhe proporciona irrigação natural. Seu vizinho a montante constrói uma represa na divisa das propriedades e para abastecê-la desvia provisoriamente o leito de água. Dá-se que o batatal exige mais de uma irrigação diária, se o agricultor recorresse ao Poder Judiciário, até obter a medida corretiva, sofreria sensível quebra de produção. Decide e o faz a manu propria, retornando dois terços das águas do riacho ao seu leito normal, o suficiente para a irrigação de sua lavoura. A ação moderada, timbrada pela urgência por isso independentemente de autorização judicial, de modo a não impedir o direito do vizinho de abastecer a represa, aninha-se na autodefesa. Outro exemplo pode ser suposto no caso de locação: o locatário, que ao desocupar o prédio, pretenda retirar coisas de propriedade do locador, que presente evita moderadamente o fato que lhe é danoso. Também o corpo de bombeiro, no uso moderado de força, para vencer a resistência do proprietário da casa, que procura impedir o ingresso da corporação no combate ao fogo, que consume o imóvel com risco de se alastrar para os prédios vicinais.
A análise desses exemplos lembra a lição de Pontes de Miranda:
 A justiça de mão própria é a aplicação da regra jurídica pelo próprio interessado, quando aquele, que devia atender à incidência da regra jurídica, a ela não atendeu. O interessado põe-se no lugar que, depois que a justiça se tornou monopólio do Estado, a esse, e não a particulares caberia. Ele substitui o juiz[2].
Ademais, restringe-se, em regra, às situações não consolidadas. No exemplo da locação, se o locatário, embora ilicitamente, apossa-se de móveis do locador, transferindo-os para outro imóvel deles fazendo uso, a medida judicial de busca e apreensão é o remédio jurídico. Não mais se justifica a autotutela pelo decurso de prazo.
1.1 Requisitos
O lusitano Antunes Varela lista os seguintes requisitos como necessários para que se aperfeiçoe a conduta em autodefesa:               
a) Fundamento real: é necessário que o agente seja titular de um direito, que procura realizar ou assegurar.
b) Necessidade: o recurso à força terá de ser indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar o prejuízo.
c) Adequação: o agente não pode exceder o estritamente necessário para evitar o prejuízo, é, enfim, a moderação.
d) Valor relativo dos interesses em jogo: não pode o agente sacrificar interesses superiores aos que visa realizar ou assegurar[3].
                 Portanto, a juridicidade da conduta do credor que exerce a autotutela, praticando conduta de fazimento (obrigação de fazer) ou de desfazimento (obrigação de não fazer), informada pela urgência e por isso sem autorização judicial, deve ser sopesada conforme ponderação dos interesses em conflito. Dentro dessa perspectiva, raros são os casos, caracterizando-a apenas o caso singular cuja sentença favorecesse aquele que atua dentro dos limites dos requisitos discriminados. Em contrário, não estaria justificada a conduta, que recairia no abuso de direito conforme providencia o art. 187 do Código Civil.
                Nesse caso de exercício abusivo de direito, porquanto o caso não se enquadrava na autotutela, o devedor poderá impetrar ação de perdas e danos pelo despropósito da conduta do credor.     
1.2 Direito comparado
                  Na verdade, os requisitos supra-expendidos são retirados do próprio Código Civil português, que estampa didático dispositivo a respeito, com o subtítulo acção directa:
Art. 336, 1. É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo. 2. A acção direta pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou noutro acto análogo. 3.A ação direta não é lícita, quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.
                O Code des Obrigations da Suíça também contempla a autotutela. No seu art. 52, sob a rubrica “uso autorizado da força”, dispõe nestes termos[4]:
[...]
3. Aquele que recorre à força para proteger seus direitos não deve qualquer reparação, se, devido às circunstâncias, a intervenção da autoridade não puder ser obtida em tempo útil e se não houver outro meio de impedir que esses direitos sejam perdidos ou que o exercício dos mesmos torne muito difícil.
                 No Direito argentino, ensina Jorge Bustamante Alsina:
 "Esta figura tem um parentesco próximo com o estado de necessidade e a legítima defesa: tem em comum com eles a força da circunstância externa que autoriza agir embora com isso se prejudique outro. É a expressão juridicamente regulada de fazer justiça com a própria mão. Em princípio está proibido fazer justiça por si mesmo; constitui uma regra elementar da convivência para impedir que reine o caos e a violência. Em certas circunstâncias a autodefesa não é senão o exercício do direito de proteger uma pretensão legítima que pode ver-se frustrada irreparavelmente ou dificultada manifestamente sua efetividade pela impossibilidade de requerer e esperar o auxílio ou a intervenção do Estado" [5].
 1.3 Código de Bevilaqua
                Desde o Código Civil de Bevilaqua a autotutela é prevista, assim no art. 516, atual art.1.219 (que se refere ao art. 873, atual art. 242), outorgando ao possuidor de boa-fé o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis até se ver ressarcido.
 "Direito de retenção – Reconhecimento – Consertos de bem móvel – Aplicação dos arts. 873 e 516 do CC. O prestador de serviços relativos a bens móveis alheios beneficiados ou consertados tem o direito de retê-los até o pagamento do preço, em face do preceituado nos arts. 873 e 516 do CC (1º TACivSP, 4ª Câm., j. 17.6.81, rel. Juiz Rafael Granato, in RT 553/151)".
 Da mesma forma, no art. 502, atual art. 1.210, § 1º, que preveja o desforço possessório,
"Posse – Ação possessória – Esbulho – Desforço direto – A regra do art. 502 do CC autoriza o desforço imediato para que o possuidor turbado ou esbulhado se mantenha ou se reintegre na posse, mas o emprego da força própria deve ser imediato à violência – Admite-se quando o atentado é de natureza clandestina, que o desforço em defesa da posse se faça incontinenti ou logo em seguida à notícia que tenha o possuidor da violência sofrida. O que a lei não admite, pois, é o desforço posterior (2º TACivSP, in JB 6/290)".
                São decisões que se amoldam à atualidade, pois as disposições legais identificam-se, e o Código Civil revogado representa, repita-se, inestimável patrimônio de pesquisa e de estudos, de sorte acumula vigoroso saber jurídico esculpido na doutrina e na jurisprudência durante a sua vigência.
1.4 Conclusão
                1) A regra geral é que cabe ao Estado o monopólio da justiça, devendo ser chamado a intervir nos casos de conflito de interesses. Tanto assim, que é figura típica no Código Penal fazer justiça pelas próprias mãos.
                2) Há casos, no entanto, que a urgência justifica ao particular tomar as providências necessárias à preservação de seu direito, desde que aja dentro dos apertados requisitos que informam a autotutela.
                3) Trata-se de figura jurídica contemplada desde o Código de Bevilaqua, sendo que o de Reale acrescentou duas novas disposições relacionadas às obrigações de fazer e não fazer.
                4) Várias legislações estrangeiras também recepcionam a autotutela, ressaltando-se a portuguesa, a suíça e a argentina.
                  5) Para fecho, que fique bem saliente, o direito admite a autotutela em termos bem restritos, ou condições muito apertadas, porquanto não deixa de ser uma forma primária e grosseira de realização da justiça, fazendo com que o mais forte se conduza a excessos – que devem ser indenizados – contra o mais fraco, com intolerável dano à paz pública.
____________
*Notas:
[1][1] NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal, 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 391.
[2] PONTES, Miranda. Tratado de direito privado – Parte Geral. Rio de Janeiro: Borsói, 1954, p. 313.
 [3]VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, vol. 1. Coimbra: Almedina, 2000, p. 554.
[4] Art. 52 [...] 3 Celui qui recourt à la force pour protéger ses droits ne doit aucune réparation, si, d’après les circunstances, l’intervention de l’autorité ne pouvait étre obetenue en temps utile et s’il n’existait pas d’autre moyen d’empêcher que ces droits ne fussent perdus ou que l’exercice n’en fût rendu beaucoup plus difficile. 
[5] - ALSINA, Jorge Bustamante. Teoria general de la responsabilidad civil, 2 ed. Buenos Ayres: Abeledo-Perrot, [s.d.], p. 118-119. No original :“Esta figura tiene un parentesco próximo con el estado de necesidad y la legitima defensa: tiene con ellas en común la fuerza de la circunstancia externa que autoriza a actuar aunque con ello se dañe a otro. Es la expresión jurídicamente controlada de hacerse justicia por mano propia. En principio está prohibido hacerse justicia por si mismo; constituye una regla elemental de la convivencia para impedir que reine el caos y la violencia. En ciertas circunstancias la autoayuda no se sino el ejercicio del derecho de proteger una pretensión legitima que puede verse frustrada  irreparablemente o dificultada manifiestamente su efectividad por la imposibilidad de requerir y esperar el auxilio o la intervención del Estado.”

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